domingo, 4 de maio de 2008

Amizade e cumplicidade


Construo uma situação, uma hipótese de como uma amizade pode começar. Vamos supor que alguém esteja num bar, numa sala de aula, em algum lugar qualquer, e veja uma pessoa totalmente desconhecida.

Essas duas pessoas trocam olhares, arriscam um sorriso, algum sinal de comunicação mútua. Pois bem, se o que predomina, nesse momento, é o interesse sexual, uma pessoa estará olhando para a outra, se comunicando com a outra, sem fazer referência a mais nada: olha para a outra pessoa, sorri para a outra pessoa, e espera apenas que no olhar da outra pessoa se reflita um movimento equivalente de interesse.

Imagine-se, entretanto, numa sala de aula, ou num bar, que exista um terceiro indivíduo –um professor, um garçom, um outro freqüentador do bar, um aluno — e que esse terceiro indivíduo tenha dito alguma coisa ridícula, tenha repetido algum hábito já conhecido, tenha entrado, por assim dizer, em algum papel social claramente caricatural.

As duas pessoas se olham novamente: trocam olhares, como no caso da paquera. Mas esse olhar não se esgota no interesse de um pelo outro; esse olhar, de cumplicidade, faz referência a um terceiro, a um outro, que é exterior às duas pessoas que se olham.

Esse olhar, que pode ser correspondido ou não, é diferente do olhar de interesse sexual: é um olhar de amizade. Claro, isso pode ser apenas o primeiro passo para um romance. Mas o fundamental, no caso, é que há um terceiro, uma esfera exterior, uma coisa “de fora”, à qual o olhar de duas pessoas se refere.

Nesse sentido é que eu considero a amizade uma espécie de cumplicidade do bem. Se, numa classe, numa sala de aula, eu “escolho” alguém para trocar esse olhar, no momento em que o professor repete uma besteira, é como se eu soubesse, por algum tipo de sinal, que a pessoa a quem eu dirijo esse olhar está no mesmo estágio de percepção das coisas, pode tão bem quanto eu perceber um traço ridículo que os demais talvez não percebam.

Pessoalmente, eu nunca me senti capaz de ter amizade com alguém sem ter essa instância “exterior” a respeito da qual se pode criar um espaço de cumplicidade, uma espécie de círculo mágico, do qual “os outros” estão excluídos.

Para dar um exemplo, ainda da época de faculdade, havia um professor com quem eu sentia muita afinidade, e que admirava muito. Houve momentos, em sala de aula, que trocamos olhares a respeito de uma intervenção mais desastrada de um aluno. Mas só começamos a ser mais amigos muito mais tarde, depois de eu ter encerrado minha vida universitária, no momento em que pudemos, com liberdade, falar mal – um pouco mal— de colegas meus.

Assim como o uso de palavrões, ou algum comentário sexista, é só a partir de alguma coisa “errada” feita em conjunto que se pode estabelecer algum laço de confiança, algum tipo de atitude que exigirá, posteriormente, de nós dois uma atitude de discrição.

Claro que essa referência a um terceiro, que eu estou simplificando aqui, passa por inúmeros testes, e encontra versões muito mais complexas do que as que eu exemplifiquei.

Pode surgir de situações de perigo comum, ou de empreitadas comuns, contra alguma coisa ou alguém; pode prosperar, frutificar ou não numa amizade longa, ou ir desaparecendo ao longo do tempo, em função de inúmeros outros fatores.

Tudo envolve, naturalmente, uma afinidade de interesses,de modos de vida, de gostos. Mas eu conheço muita gente de quem eu poderia ser amigo, pelos interesses, pelos modos de vida, pelos gostos, e que entretanto não é amiga minha, porque faltou esse tipo de vivência, esse tipo de ocasião em que, de algum modo, um relacionamento recíproco se fecha, ou se reserva um espaço, frente ao mundo exterior, sem entretanto ignorá-lo.

Dificilmente, portanto, eu concordaria com a visão de uma amizade em que uma alma é “espelho” da outra, ou, segundo a definição clássica, em que “uma alma só está ocupando dois corpos diferentes”. Se há espelho, no caso, é como se tivéssemos dois espelhos, em ângulos diferentes, que por alguma razão refletiram o mesmo objeto ao mesmo tempo; e que assim se completam, se criticam, e concordam quanto ao essencial.

Escrito por Marcelo Coelho



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